"A surdez não interfere na minha capacidade de ser uma boa mãe", desabafa professora
Nesta semana, "CODA - No Ritmo do Coração" levou a estatueta de Melhor Filme do Oscar ao contar a história de uma família de surdos, em que apenas a caçula é capaz de ouvir. Mas criar filhos ouvintes, sendo deficiente auditivo, não é uma realidade só de cinema. CRESCER conversou com uma família que também vive essa experiência e com uma especialista, para esclarecer porque é tão importante abordar esse assunto nas telonas.
Na manhã da última segunda-feira (28), um grupo de crianças e adolescentes se reuniu em uma sala em Cotia, na Grande São Paulo, para assistir ao filme "CODA - No Ritmo do Coração". A escolha não foi à toa. A produção havia ganhado na noite anterior a estatueta de Melhor Filme no Oscar, a mais famosa premiação de cinema do mundo.
Seria mais uma exibição, como outra qualquer, se não fosse por um detalhe. Todos da plateia tinham uma coisa em comum: eles eram surdos, assim como três dos quatro protagonistas do filme.

"CODA - No Ritmo do Coração" ganhou o prêmio de Melhor Filme na edição de 2022 do Oscar (Foto: Divulgação)
"Fomos passando o filme com legenda, mas nem todos conseguem ler, porque têm bastante dificuldade com o português. Passávamos um pedaço e pausávamos, para que a intérprete de LIBRAS fizesse um apanhado do que aconteceu e tirasse dúvidas, para que os pequenos tivessem a compreensão total do filme. Eles ficaram bastante impactados ao ver ali na tela uma história muito parecida com a que eles vivem todos os dias", disse a assistente social Rosangela Zanetti (SP), coordenadora do Instituto Adhara, que ajuda crianças, adolescentes e jovens surdos a se inserirem de forma autônoma na sociedade.
Essa identificação das crianças aconteceu porque "CODA - No Ritmo do Coração" conta a história de uma família de quatro pessoas, das quais apenas Ruby (Emilia Jones), a filha mais nova, é ouvinte. Ela ainda está terminando os estudos na escola, mas divide o tempo entre ajudar os pais e o irmão, que são surdos, e praticar sua grande paixão, o canto.
Desde que foi lançado em janeiro de 2021, no tradicional Festival de Sundance (EUA), o filme vem colecionando elogios da crítica. Ele é uma versão do francês "A Família Bélier" (2014), só que, diferente da produção original, conta com atores surdos para os papéis do irmão e dos pais.
Quando a arte imita a vida
A dificuldade de se comunicar dentro de uma família com membros ouvintes e surdos é uma das grandes discussões do filme. Como um filho ouvinte é capaz de entender a vivência de um pai surdo? E como um pai surdo pode criar um filho capaz de ouvir? Hoje, a professora de LIBRAS Évelin Isabele da Silva, 20, tem a resposta para todas essas perguntas.

Évelin e a filha Rebecca Sophia, 1 (Foto: Arquivo Pessoal)
Quando tinha cerca de 5 anos, o padrasto de Évelin desconfiou de que havia algo de errado com ela. Depois de fazer uma investigação, os médicos apontaram que ela não escutava como as outras crianças. Os exames, porém, não foram capazes de apontar uma causa para a surdez.
"Desde então, minha família sempre me apoiou e pesquisou alternativas para que eu pudesse melhorar a minha comunicação. Com 8 anos já comecei a frequentar uma instituição para surdos. E, desde que descobrimos minha perda de audição, todos sempre falaram bem alto comigo, porque são descendentes de italianos. É assim até hoje, acostumei", disse em entrevista à CRESCER. Agora, Évelin considera a Língua de Sinais como seu idioma materno, mas também consegue se comunicar com pessoas ouvintes, graças ao aparelho auditivo e à leitura labial.
Mãe cria aparelhos auditivos divertidos para o filho com deficiência
Apesar da forma natural como a família dela conduziu a situação na infância, a surdez voltou a ser uma questão quando Évelin descobriu que estava grávida, em 2020. Foi aí que ela se viu exatamente na mesma posição de Jackie Rossi (Marlee Matlin), a mãe do filme "CODA". "Fui ao laboratório fazer um exame de sangue e, enquanto o resultado não saía, eu estava muito nervosa, com toda aquela culpa vindo e me perguntando como é que seria capaz de ter uma criança, sendo mãe surda", lembrou. "Foram mais ou menos dois meses de gestação até eu começar a aceitar que, sim, sou capaz de ser uma boa mãe. A surdez não interfere em nada e enfrentarei o mundo se for preciso", destacou.
A importância da família
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), mais de 10 milhões de brasileiros são surdos. Isso significa que pelo menos 5% da população enfrenta os mesmos desafios contados por Évelin e pelos personagens de "CODA".
Apesar do número significativo, ainda hoje nem todos os espaços e todas as pessoas estão preparados para acolher e receber pessoas com deficiência auditiva. "A surdez é uma deficiência invisível. Mesmo quem tem outras deficiências consegue se comunicar de alguma forma com os ouvintes. O único que não consegue é o surdo. E essa dificuldade de, muitas vezes, poder se posicionar no mundo gera muita ansiedade e desgaste psicológico", explica Rosângela, do Instituto Adhara.
Em muitos casos, essa dificuldade já começa dentro de casa. Para que uma família de ouvintes e surdos possa se comunicar, é fundamental que, antes de tudo, todos aprendam LIBRAS. Não adianta que apenas o cuidador principal assuma esse papel de intérprete. "O surdo precisa ganhar autonomia e, para isso, a família deve estar envolvida e comprometida no processo. Existe um sentimento de querer fazer implante coclear, usar aparelho auditivo, fazer com que o familiar fale português… Mas mesmo se esses recursos forem possíveis, as famílias precisam enxergar o surdo como ele é. Existe uma identidade surda e isso não muda", acrescenta Rosângela.
Trabalho em equipe
Foram esse apoio e essa participação da família que permitiram que Évelin, do começo da reportagem, pudesse enfrentar os desafios de, enquanto mãe surda, poder criar uma filha ouvinte. Hoje, a pequena Rebecca tem apenas 1 ano, mas já sabe que a mãe não escuta como todo mundo. "Ela entende superbem e já até aprendeu algumas coisas em LIBRAS. Querendo ou não, ela ainda tem mais contato com ouvintes e confesso que eu não sou o tipo de mãe que fica o tempo todo falando em LIBRAS com a filha. Com o tempo, ela vai pegando o jeito", conta.

Évelin ao lado da filha, Rebecca, e do companheiro, João Vitor (Foto: Arquivo Pessoal)
Desde o começo, a professora pode contar com a ajuda dos familiares para enfrentar todos esses desafios. Seja na hora de ouvir o choro da pequena ou de levá-la às consultas médicas, por exemplo. "Meu marido, meus pais, minha tia e avós também sofrem, porque falta acessibilidade nos lugares públicos. Por isso, sempre me acompanham. As pessoas ficam perdidas e não sabem como se comunicar comigo. O maior problema é lidar com a falta de empatia das pessoas, que acham que a mãe surda é incapaz e não sabe cuidar da criança", desabafa.
Segundo Évelin, mensagens como a transmitida pelo filme vencedor do Oscar são importantíssimas para que as pessoas ouvintes tenham mais contato com o universo surdo e saibam como se portar. "Quando eu saio com a minha filha na rua e percebem que eu sou surda, ficam com olhares tortos, com pena. Isso me dá raiva, não vou mentir. Mas aí eu conto minha história e trago informações. O que nós precisamos mesmo é fazer essa ponte de conhecimento", finaliza.
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